segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Águas passadas

Era tarde de um domingo, passava pouco do horário do almoço. A brisa era leve, de fato, pouco mais do que 8 nós de vento faziam o veleiro movimentar-se lentamente.

Ele estava sentado, olhos no horizonte, no bordo de boreste da embarcação. Ela estava no bordo de bombordo, mão direito na roda de leme, observando o movimento das ondulações do mar que ia e vinha devido à proximidade das rochas no lado leste de Ilhabela, rumando sul para completar a volta.




O que poderia ter sido uma tarde comum de domingo, tratava-se na realidade de uma experiência espiritual. Sim, porque a cada nova empreitada com velas ao vento, nos borrifos salgados que iluminam os rostos daqueles que amam o mar, há sempre uma experiência espiritual.

Ele tentava compreender se aquela sensação se devia a todo aquele contato com a natureza: o vento, o mar, o sol, a exuberância daquela região tão pouco explorada de Ilhabela, as aves marinhas, tartarugas que cruzam o caminho...

Ela prestava atenção nas nuvens cinzentas que se formavam no horizonte: "Deve estar chovendo forte em Santos". Respingos salgados tiraram sua atenção daquele pensamento, aquelas gotículas salgadas no rosto traziam a lembrança de tempos passados, da infância naquele mesmo mar, pouco mais a oeste, no Canal de São Sebastião, na praia de São Francisco, sentada na areia, brincando na água do mar, junto de seu melhor amigo, o irmão sete anos mais velho, outro apaixonado por aquele mundo de água de salgada.

Ele é caiçara, nascido em Alagoas, passou os primeiros anos de vida na bela praia de Paripueira, um peixinho de água salgada desde o nascimento.

Ela, apesar de nascida em ambienta mais urbano, teve na infância o contato com a natureza que toda criança deveria ter. Aos 6 meses de vida foi a primeira vez que ela entrou no mar, naquelas águas mansas de São Francisco.

Paripueira significa "águas mansas" em tupi, engraçado como antes mesmo que eles se conhecessem, a vida no mar já os aproximava.

Ele em Alagoas, ela em São Paulo, quem poderia imaginar que um dia seus destinos se cruzariam? Quem poderia dizer que estaríam, literalmente, no mesmo barco, algum dia?

Ela tinha no irmão, o exemplo, a amizade, o conforto, o suporte para a vida... Mas a vida às vezes é irônica. Um infarto fulminante, levou desse mundo, aos 28 anos de idade, o irmão-amigo. Ela viu seu mundo cair, mas a ironia da vida trouxe naquele momento, o homem de sua vida, com todo o suporte que ela precisou naquele dias nebulosos, com muito amor, respeito e admiração pela força que ela demonstrou ter para superar tudo aquilo.

Ele é o amor da vida dela, o homem que entrou na vida dela no momento certo e trouxe de volta a magia do mar. E ela foi quem o apresentou àquele paraíso na terra, foi ela, ainda com o irmão junto que o levaram para aquele que o casal passou a chamar de "o mar do coração" ou o "mar doce lar" deles.

E nesta tarde de domingo, o casal está no veleiro, vento de sul, agora já uns 14 nós, a contra-vento, seguindo, rumo à volta completa em Ilhabela, com um pôr-do-sol estonteante e uma tempestade linda e tenebrosa se aproximando. E os respingos salgados que trouxeram as belas lembranças, são águas passadas, bem como toda aquela vida que já passou. Diz a sabedoria popular que águas passadas não movem moinhos, mas para Ela, ali, sentada a bombordo do homem que ama, águas passadas movem mais do que moinhos, movem veleiros, movem sonhos, movem vidas, movem histórias, movem destinos.

O belo Cabo Horn 35 que os levava nessa magnífica jornada espiritual, de lembranças e aprendizados, de planos para o futuro e sonhos a serem alcançados, é uma metáfora materializada do que é a vida. Juntos, no mesmo barco, com passados diferentes, pois o que cada um viveu dentro da mente até aquele ponto é pessoal e intocável, mas estavam sempre de alguma forma ligados por uma paixão: o mar. E naquele magnífico pôr-do-sol, de repente seus corações e pensamentos se cruzaram, tantas aventuras juntos, agora ainda embarcados nessa vida a dois, com sonhos, objetivos e planos em comum.

ELA sou eu! E a minha vida vem em rajadas fortes e assustadoras, cheias de respingos de água salgada cheios de lembranças e aprendizados, sempre lavando a minha alma com água salgada, me renovando e revitalizando para os novos caminhos que as próximas velejadas mostrarão à minha frente.

Velejar é sempre uma experiência espiritual que nos coloca em contato direto com a natureza e nos deixa tão dependentes dos fatores externos, que nos ensina sempre a humildade de saber que não temos controle sobre tudo, que nos ensina a necessidade de sermos flexíveis e nos aproxima tanto do mundo espiritual que é quase sempre possível vislumbrar nos lugares mais improváveis um pouco daquilo que nossas almas refletem para mostrar o caminho para a realização dos nossos sonhos mais profundos.

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